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Monthly Archives: May 2021

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aos baldes

entaladas na ampulheta

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Eduardo Maciel, autointitulado mangueador, um dos protagonistas de “No Vermelho”, documentário de Marcelo Reis

Dois de maio foi aniversário do amigo Marcelo Reis, documentarista com quem trabalhei na assessoria de imprensa de alguns de seus filmes e também na realização da Mostra Funk.DOC. “Vão fazer, vão fazer”, a voz de Marcelo, falecido em 2016, ainda ressoa na minha cabeça cheia de ideias raramente concretizadas. Saudosa das nossas conversas, na data em que comemoramos seu nascimento, reli a entrevista que fizemos para a redação do release da estreia de “No Vermelho”, em 2016. Compartilho essa breve entrevista abaixo, seguida de uma apresentação de Marcelo com links para alguns de seus trabalhos.

Débora Fantini: Como surgiu o projeto do documentário: da questão da apropriação do semáforo, transformado, de dispositivo de controle em espaço de encontro, ou de um desejo desse encontro, mediado pela câmera, com as pessoas que vivem ativamente essa apropriação?

Marcelo Reis: A ideia de documentar as pessoas que vivem do (e no) sinal de trânsito partiu do Guilherme Reis, o diretor de fotografia do filme. A partir da ideia pontual, eu desenvolvi o projeto focando no sinal vermelho como uma “zona autônoma temporária” que possibilita o encontro entre cidadãos que provavelmente jamais se encontrariam em outro local da cidade. O filme fala dessa apropriação sócio-econômica de um dispositivo de controle do tráfego e o olhar guia é sempre de quem está do lado de fora do carro. Os personagens falam muito de si, mas especialmente de quem está do lado de dentro dos automóveis, que, estatisticamente, costuma ser o público consumidor de cinema no Brasil. Assim o documentário acaba servido não só para dar voz para pessoas não ouvidas, mas para uma auto-reflexão de uma sociedade “carrocêntrica” como é a nossa.

Débora Fantini: Assim como “Aterro”, “No Vermelho” é um retrato audiovisual de sete pessoas em torno de semáforos. Como foi a pesquisa para encontrá-las e definir quem estaria presente no documentário? Essas pessoas ou alguma(s) dela(s) já estavam presentes em seu cotidiano?

Marcelo Reis: O número de 7 personagens, como em Aterro, surgiu naturalmente. O filme chegou a ter 9 personagens, mas tanto no processo de gravação quanto de edição este número caiu para os 7 selecionados. Meu processo de pesquisa, junto com a Patrícia Vieira, é sempre muito intuitivo. Minha única preocupação era tentar abranger ao máximo as diversas atividades que existem no sinal. De todos os presentes no filme apenas os irmãos vendedores de fruta eu já conhecia previamente. Na verdade eles fizeram parte da minha infância, quando eu passava de carro na saída da escola e minha mãe comprava frutas deles, também crianças.

Débora Fantini: Em outra ocasião, você comentou que deixou o Guilherme imprimir um olhar mais “estético” (palavra sua), subjetivo, à fotografia de “No Vermelho”. Por que e como isso se deu, e só agora? Avesso que era a esse tipo de tratamento em um documentário, como avalia o resultado em relação à ideia que fazia dessa abordagem?

Marcelo Reis: O meu trabalho com documentário sempre colocou a ética em detrimento da estética. Faço e gosto de documentários mais ortodoxos, sem cenas criadas para câmera e outros elementos do cinema ficcional. Senti que neste documentário totalmente urbano eu poderia usar mais de elementos que deixassem o trabalho final mais apurado esteticamente, tanto na fotografia como na trilha sonora. Mantive meus métodos de trabalho, mas tentei filmar mais para ter mais opções de imagens. Inclusive eu faço a fotografia adicional do filme e algumas várias imagens que gosto muito de ter feito entraram para o documentário. Sobre a trilha, finalmente pude fazer um longo trabalho com o Raul Duarte que compôs várias músicas e fomos refinando quais e como entrariam no filme. O resultado final para mim foi excelente.

Débora Fantini: “No Vermelho” compõe uma trilogia sobre a cidade de Belo Horizonte com dois outros documentários seus (“Aterro”, de 2011, e “Esculacho”, de 2013). O que o novo filme tem em comum e de singular em relação aos anteriores?

Marcelo Reis: Eu ainda tenho dúvida se coloco como trilogia, ou se meu 3o. Longa é que vai formar esta trilogia. Depois de diversos documentários sem orçamento, nos meus três recentes trabalhos eu pude fazer o que eu realmente acredito e gosto como documentarista. Acho que o No Vermelho tem em comum com Esculacho e Aterro é a vontade de ouvir e registrar pessoas que estão à margem na cidade de Belo Horizonte. De certa forma, são pessoas que estão à margem de toda cidade brasileira e, em alguns casos, em toda cidade latina. E minha intenção não é em um sentido altruísta de “dar voz aos sem voz”, mas de possibilitar o encontro entre pessoas que normalmente não se encontram e não se ouvem numa sociedade classista como a nossa. Quando entrevisto essas pessoas penso no impacto de suas falas nos ouvidos de quem consome cinema, seja em mostras, TV a cabo ou internet. A ideia é difundir o ponto de vista de outras realidades, com a mediação o mais honesta e ética possível.

Sobre Marcelo Reis

Marcelo Reis (Belo Horizonte, 2 de maio de 1982 – 3 de agosto de 2016) foi um documentarista mineiro. Atuou também como radialista, músico, jornalista independente e educador. Realizou documentários que foram exibidos em 30 diferentes festivais pelo mundo, colecionando prêmios. Em 2010, foi um dos quatro brasileiros selecionados para o Talent Campus da Universidad del Cine de Buenos Aires. O tema do ano era o “Cinema Documentário” e concorriam produtores de até 29 anos, de toda a América Latina.

Sua filmografia inclui os longas “No Vermelho” (2016) e “Aterro” (2011) – este recebeu as premiações Green Award – Third World Independent Film Festival 2011, na Califórnia, Estados Unidos; Prêmio Luis Espinal – 7ª Mostra Cine Trabalho de Marília, São Paulo, e Melhor Filme do Júri Oficial – II Festiver, na Colômbia, estes em 2012.

Realizou também os médias-metragens “ESPAÇO RESERVADO P/ PICHADORES” (2007) e “O Imortal do Gelo” (2015), codirigido com Emmerson Maurílio, abordando a memória do seu time do coração, o Atlético Mineiro.

Entre seus curtas, destacava “Esculacho” (2013), “Você tem identidade?” (2007) e “Quando a Parede Cai” (2009), codirigido com Nilo Augusto e Patrícia Vieira – uma de suas grandes parceiras, atuando na produção, pesquisa e assistência de direção de outros de seus documentários. Seu último filme foi “Bênção” (2016), com a benzedeira Dalila Senra Fabrini, falecida em 7 de agosto de 2016, e codirigido com outro de seus grandes parceiros, Guilherme Reis, seu primo. O curta-metragem estreou em julho de 2016, no Museu da Imagem e do Som de Belo Horizonte (MIS-BH) – Cine Santa Tereza, e foi selecionado para a mostra competitiva do festival É Tudo Verdade (2017).

Blest Marcelo Reis esteve à frente da produtora Blest, antiga Bagulium Loquo Est, criada por ele em 2009, com foco nas áreas de música, making of e documentário. Sua produção de estreia foi “EZ Money”, videoclipe do músico Retrigger – projeto de Raul Duarte, outro parceiro do documentarista, tendo sido responsável pelas trilhas sonoras de “No Vermelho” e “Esculacho”. O clipe foi selecionado para três festivais de cinema com competitivas do gênero. Com Raul, também realizou o DVD “Retrigger – 10 anos tocando pros amigos“. Em 2010, dedicou quase todo seu trabalho à produção do documentário “Aterro”, apresentado no ano seguinte. Em 2013, lançou “Esculacho”. Suas últimas realizações foram os documentários “No Vermelho” (2016), “Bênção” (2016), em parceria com a produtora Postura Digital, de Guilherme Reis, e “O Imortal do Gelo” (2015), em parceria com o Centro Atleticano de Memória (CAM).

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